Sítio Pau d’Alho - Rio Pacoti

Hoje, impossível não lamentar o estado de abandono em que se encontra o poluído Rio Pacoti. Ele que é a razão de tudo! Suas águas, outrora limpas e perenes, saciaram a sede de muitos homens e mulheres, de animais, alguns já extintos, assim como viabilizaram o progresso agrícola de todos os recantos por onde passou...
A poesia de Alberto Caeiro nos dá a fórmula exata de se entender o encontro de nossa história coletiva e pessoal com o meio ambiente. O rio Tejo, exaltado por inúmeros outros escritores, e sendo o maior rio de Portugal, em extensão e fama, parece ser, por um instante, o mais belo rio no pensar do poeta. Mas Caeiro já foi criança, e o rio de sua infância, e de sua vida, foi o rio de sua aldeia. Quiçá ali brincou, mergulhou em suas águas, correu ou namorou em suas margens. Ali matara sua sede, junto dos seus, ali refletiu e inspirou-se para escrever o seu poema que nos conta dos sentimentos da vida neste planeta água, antes de Terra.
Sobre o rio de “nossa aldeia” os sentimentos de vocês devem ser bem diferentes... Alguém hoje imagina inspirar-se olhando as águas que correm debaixo da ponte para à Paca?
Os mais velhos podem ainda se lembrar em quantos córregos entraram, mergulharam as mãos e, muitas vezes, banharam-se em límpidas águas. Alguns ainda devem se lembrar de que pescavam ali no riacho, vindo da Monguba, onde hoje são ruas e a praça central. Não vemos mais o rio de nossa aldeia e, quando vemos, lamentamos e o esquecemos.
Por meio da História da humanidade, vimos que as civilizações antigas cresceram nas margens de rios. Já dizia o grego Heródoto em sua celebríssima frase “o Egito é uma dádiva do Nilo”. Mais antiga ainda a habitação da região mesopotâmica que, como diz seu nome, é uma “terra entre (meso) rios (potamus)”, o Tigre e o Eufrates. A irrigação dos plantios, com cheias naturais, e depois o surgir dos diques, açudes, e outros projetos hidráulicos que o homem fez para sua sobrevivência.
Com tanta importância, nosso Rio Pacoti merecidamente deu nome à antiga vila cujo centro ainda segue guiado e entrecortado por ele. Sobre o assunto, partilho interessantes descobertas de pesquisa que contribuem para a escrita da história do próprio rio.
Na mais antiga documentação referente às terras cearenses (datas de sesmarias), o termo “Pacoty” denomina posses situadas nas margens do rio de mesmo nome em Aquiraz, na faixa litorânea. Da mesma forma, em farta documentação territorial de meados do Século XIX, quando a Serra de Baturité passou a ser ocupada gradual e definitivamente, não existem citações a esse termo na região serrana, aparecendo somente referências ao rio ou riacho Pendência (antigo nome do município).
Concluindo-se que o atual rio que chamamos Pacoti possuía três nomes: rio (ou riacho) Pendência, nas cabeceiras, ou nascente, na serra. Acarape, em seu leito na planície sertaneja e finalmente Pacoti quando já próximo de sua foz, ou embocadura, no Aquiraz, depois de um percurso de 120 km. Isto provavelmente ocorreu com outros rios até a chegada da ciência corográfica/geográfica pela qual se estabelece a ideia do curso de um rio por completo, devidamente mapeado em todas as suas partes. Antes, os rios e riachos eram batizados ao gosto dos habitantes de cada aldeia por onde passavam.
Nas últimas décadas oitocentistas o Ceará recebeu importantes contribuições sobre o estudo de seu espaço geográfico. Pesquisadores como Thomaz Pompeu e Guilherme Studart (o Barão), foram pioneiros ao publicar estudos a esse respeito. Assim, o eco das novas informações fez a população da povoação da Pendência reconhecer que o seu riacho era, na verdade geográfica, o “Rio Pacoti”, designação que se tornou a oficial, legitimada pelos intelectuais de Fortaleza, vizinha de Aquiraz.
De onde vem “Pacoti”?
A toponímia (nome dos lugares) tem no vocábulo “Pacoti” uma série de divergências de significados, algo muito frequente com outros termos e expressões brasileiras provenientes das línguas indígenas. Tantas definições são fruto da natural dificuldade de se decifrar idiomas que foram praticamente destruídos juntamente a outros elementos culturais dos nativos durante a colonização portuguesa, marcada pela imposição/mistura de outras culturas e também pelos massacres (genocídios). Na condição de ágrafos (sem escrita), os índios não registravam documentos. Sua comunicação era coisa arquivada na memória e passada oralmente dos mais velhos aos jovens.
Mesmo assim, a língua falada no Brasil nos primeiros tempos de colonização foi o tupi, esta sendo a principal vertente pelo quantitativo populacional das nações tupis-guaranis existentes ao longo da costa brasileira e as primeiras a travarem contato com os colonizadores. A chamada língua brasílica se tornou o idioma mais usado não só no litoral, mas em todo o atual território brasileiro, durante os séculos XVI e XVII, por intermédio dos portugueses e de seus descendentes mestiços (o termo "língua tupi" somente se generalizou a partir do século XIX). (NAVARRO, E. A. Método moderno de tupi antigo: a língua do Brasil dos primeiros séculos. Terceira edição revista e aperfeiçoada. São Paulo. Global. 2005. p. 9.).
Muitos viajantes, pesquisadores da etnografia e curiosos diante do “exótico”, buscaram fazer o que os índios não podiam: registrar aquelas estranhas línguas no papel, ouvindo-as e tentando dar grafia às mesmas com bastante dificuldade. E é justamente a partir desse legado escrito a respeito dos idiomas indígenas, principalmente o tupi, que se tenta definir os nomes atribuídos às localidades pelos antigos e primeiros habitantes. Vale ressaltar, porém, a existência de inúmeras variações idiomáticas, de outras nações indígenas como as que habitavam nos sertões (jês, tapuias) comumente denominados pelos portugueses de “línguas-travadas”, pela diferença com o já familiar tupi.
Pacoti, até o presente momento, possui seis significados que relaciono com suas descrições e respectivos autores defensores de opiniões diferentes na tabela a seguir:

Fonte:O Ceará, de Raimundo Girão e Antonio Martins Filho, p. 434; Enciclopédia dos Municípios Brasileira, vol. XVI, IBGE, p. 430. A Grandeza Índia do Ceará, Org. Floriano Martins, textos de Thomaz Pompeu Sobrinho, p. 180.
Sobre o significado n.º 01, Paulino Nogueira ao registrar essa etimologia sugerida por Martius, diz que o rio é realmente voltado para o mar, mas o são quase todos e, além disto, “Paraná” significa rio grande e não mar. Sobre a mesma etimologia, Pompeu Sobrinho diz “nada menos expressivo e de difícil acomodação fonética”.
O significado n.º 02 é o que concentra o maior número de defensores. Preferência, inclusive, dos históricos político-administrativos de Pacoti que circulam impressos ou em meio digital através de importantes publicações como o Anuário do Ceará ou dados obtidos no site do IBGE. É a opinião de Paulino Nogueira com base em José de Alencar pela obra Iracema (Dicionário, Revista do Instituto do Ceará, vol. 1.º, p. 361), também tendo a mesma opinião o Barão de Studart (RIC, tomo 38, p. 123), assim como Teodoro Sampaio.
Pessoalmente discordo dessa definição. As margens frescas do Rio Pacoti comportam e poderiam mesmo justificar a interpretação. O termo “Pacoti”, porém, como dito anteriormente, é bastante antigo porventura anterior à plantação da preciosa musácea, a bananeira, originalmente trazida da Ásia.
A mais antiga grafia deste nome, encontramos na carta de concessão da sesmaria de Estevão Velho de Moura, provavelmente de 1680. Já nesse documento se emprega a grafia atual, bem como nas duas datas de concessão de terras do rio a Manuel Lopes Calreira, ambas também de 1680. Vale lembrar que as terras em questão situavam-se no Aquiraz, não havendo datas de sesmarias na Serra de Baturité com referências a “Pacoty” e, muito menos, plantava-se banana nas suas faldas como hoje, posto que sequer houvesse sido colonizada. Fato que também vai de encontro com o significado n.º 03, onde se sugere um “Pico” das Bananas, isto é, algo referente a relevo: morro ou serra que tem um pico, cume ou cimo.
Devemos notar que em mais de três séculos o nome do rio foi sempre o atual, não experimentando neste tempo nenhuma alteração. Anteriormente, porém, poderiam ter-se dado modificações, como aconteceu com Aquiraz, localidade que dominava toda a região litorânea servida pelo rio. De mesma opinião está Pompeu Sobrinho que, rompeu com a famosa interpretação ao propor duas novas, as de n.º 04 e 05. Sendo que a última, é bastante aceitável pelo contexto histórico e geográfico já apresentado aqui. Sobre o significado “Colheitas constantes da lagoa” ele mesmo explica que faz “alusão à perenidade ou segurança das plantações que se faziam nas margens das lagoas; cultura de vazantes, cuja produtividade durante o verão contrasta com a impossibilidade de qualquer cultura nos campos secos, áridos, dos tabuleiros ou do sertão. Das lagoas marginais, que dariam boa messe, o nome passou ao rio próximo, principal fator daquela constância das safras”.(A Grandeza Índia do Ceará, Org. Floriano Martins, textos de Thomaz Pompeu Sobrinho, p. 180)
Algo que talvez reforce sua origem numa língua estranha ao tupi é foi minha constatação de que “Pacoti” é um topônimo peculiar a nós cearenses, não existindo nenhum outro município ou distrito no Brasil com igual nome. Com exceção de algo bem curioso. Descobri que existe no Estado do Acre, no município de Tarauacá, na margem esquerda do Rio Murú um seringal denominado “Pacoty”! Esta única coincidência de nomes terá a mesma gênese indígena ou o seringal terá sido batizado por um algum pacotiense que foi embora para a Amazônia na época da “febre da borracha”? É algo a se desvendar.
Por fim, não sendo nossa intenção estabelecer uma interpretação correta, dada a própria impossibilidade de fazê-la com justiça, ficam então registrados todos os esforços dos linguistas em decifrar a palavra “Pacoti” que, no imaginário dos pacotienses, talvez signifique, pura e simplesmente: “cidade abençoada por Deus e bonita por natureza”!
Fonte: Livro Pacoti: História & Memória, de Levi Jucá (Editora Premius, 2014).
Projeto Jovem Explorador e o Ecomuseu
Trilha da Memória – Pacoti – CE