Dispensário São José

 

Marco da assistência social realizada pela Congregação das Filhas da Caridade, este edifício foi construído em meados da década de 1950 graças às doações recebidas de todo o Brasil pelas mãos da destemida Ir. Rosalie Cavalcante (1900-1955). O Dispensário tinha como missão acolher os pobres, oferecendo-lhes gêneros de primeira necessidade e conforto espiritual. Posteriormente, aqui também funcionou um externato e uma creche-berçário em parceria com a Legião Brasileira de Assistência – LBA.

Entre as décadas de 1930 e 1950, a freira alagoana de nome religioso “Ir. Rosalie” morou no Patronato da Imaculada Conceição de Pacoti/CE no alto da Serra de Baturité, espaço escolar ainda hoje pertencente à congregação das Filhas da Caridade. Com o nome secular “Elisa Cavalcante”, nasceu em alto-mar e quando ainda bem criança perdera seus pais, ambos acometidos de “Bailarina” uma gripe infecciosa epidêmica que dizimou famílias inteiras. A pequena foi entregue aos cuidados de uma abastada família adotiva residente em Juazeiro do Norte, terra de Padre Cícero na região do Cariri. Já na adolescência, a jovem Elisa confirmou sua vocação apresentando-se no colégio das freiras na capital, Fortaleza, para iniciar sua vida religiosa.

Na condição de freira, Ir. Rosalie ao chegar a Pacoti, terra de sua primeira e única missão, foi encarregada pela superiora do patronato, Ir. Olga Ferraz, para administrar o espaço destinado aos pobres, um grupo essencialmente formado de famílias desvalidas sofridas, advindas do sertão próximo em tempos de seca procurando o refrigério serrano.

A irmã, um pouco robusta, sorriso franco, saía a trabalho com seu estranho véu armado sobre a cabeça, denominado “corneta”, modelo de hábito francês que lembra o da “noviça voadora” da série de TV. Chamava também a atenção de todos por seu espírito de aventura e desprendimento ao enfrentar as estradas íngremes da serra montada à cavalo sentada “de lado”, devido o uso da cela especial para mulheres, a visitar os casebres de taipa onde alentava doentes e amenizava privações doando gêneros de primeira necessidade, além de roupas, medicamentos, etc. Certas vezes acompanhada de jovens noviças, tinham que andar em alguns trechos léguas a pé, por caminhos lamacentos, atravessar rios cheios e passar por cercas de arame farpado, tudo enfrentando com risos de otimismo para amenizar o cansaço.

De caráter ardente e idealista, Ir. Rosalie zelou heroicamente dessas pessoas que procuravam abrigo e ajuda e sua influência crescia dia a dia na pequena cidade. É que tinha delicadezas de mãe, para quantos dela se aproximavam. Apesar do seu pouco estudo era dotada de grande intuição, sabendo resolver bem todos os problemas, mesmo os mais difíceis. E não foi só em Pacoti que a rodearam de estima e afeição. Também em várias outras cidades do interior, e até no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Recife, aonde quer que fosse procurar recursos para seus pobres. E sobre seus benfeitores exercia tanta influência que, dizem, alguns falavam que “à Irmã Rosalie a gente dá tudo quanto pede e ainda pensa que lhe fica devendo favor!”.

E sua vida em Pacoti foi se desenrolando por vezes cheia de lances comoventes, por vezes engraçados, quase todos ocorridos no ambiente organizado por ela para receber os necessitados. Batizado de “Dispensário São José”, esse espaço tinha como sede uma casa velha próxima do Patronato apelidada pelo povo de “chulenga”, aonde em seus cômodos armazenavam-se em caixões os mantimentos que angariava. Neles não faltavam feijão, arroz, farinha, rapadura, milho, sabão, etc. para as distribuições que fazia quinzenalmente. Houve época em que tinha cerca de 250 “protegidos” matriculados à espera de doações. Era também na “chulenga” que Ir. Rosalie ensinava o catecismo, costurava e consertava roupas e preparava datas festivas com direito a almoço e presentes como roupas, calçados e outras utilidades.

Numa dessas ocasiões, em que estava a distribuir duas sacas cheias de sapatos num lugarejo da zona rural com grande concorrência de pessoas, a irmã sentou-se um instante para aliviar o cansaço depois de longa caminhada até ali tirando os próprios sapatos e continuando a distribuição. Aconteceu, porém, que, quando terminado o trabalho quis calçar seus sapatos e percebeu que os mesmos também haviam sido doados. Felizmente apalpando um dos sacos alegrou-se ao ver que ainda restava um par que tinha justamente o seu número. Mas a decepção foi perceber que os dois eram do mesmo pé! Mesmo assim calçou-os e ainda no mesmo dia teve que viajar para Fortaleza para preparar-se para uma longa viagem ao sul do país aonde buscaria novas doações. Passou um bom tempo andando desajeitadamente, já que pelo voto de pobreza só poderia possuir um par de sapatos, até que foi presenteada com dois novos pares de sapato por um empresário que a deixou preocupada pelo fato de ganhar dois pares não seria contra o voto de pobreza!

Certa feita, Ir. Rosalie chegou a salvar o patronato da ação de dois ladrões que, disfarçados de freiras dominicanas, tentaram pernoitar no dormitório das irmãs. A única a perceber o embuste foi Ir. Rosalie que imediatamente correu ao único hotel da cidade para solicitar a reserva de um quarto para as “duas” alegando que o conforto da pousada era bem mais condizente com a importância das nobres visitantes! Destruindo o plano dos ladrões, os mesmos desapareceram na madrugada fugindo pela janela do quarto do hotel; tempos depois se soube pelos jornais de que dois gatunos vestidos de freiras eram presos em Fortaleza!

Porém, a história mais lembrada da irmã é, sem dúvida, a do escarro do ateu. Uma ocasião, entrando Ir. Rosalie num grande armazém dirigiu-se ao chefe, que sentado à secretaria contava grande maço de dinheiro. Aproximando-se, estendeu a mão e pediu-lhe uma esmola para seus pobres. O homem talvez indignado por o terem interrompido, escarrou-lhe em plena mão. Ir. Rosalie, imperturbável, com a outra mão tirou do bolso um lenço e limpou o escarro, dizendo: “Isto é para mim; eu queria uma esmola para meus pobres”. O homem caindo em si, disse-lhe comovido: “Irmã, me perdoe, pelo amor de Deus! Eu era um ateu, mas agora creio que Deus existe! Se ele não existisse não haveria pessoas como a senhora. Reze por mim!” E deu-lhe todo o dinheiro que estivera a contar e mais ainda algumas cédulas que tirou da gaveta, continuando a pedir perdão bastante humilhado. Ir. Rosalie ainda falou: “Não, meu filho. Isso não foi nada. Eu sou quem devo pedir-lhe desculpa por tê-lo interrompido numa ocasião tão imprópria”.

Depois de meses ausente, por viagens feitas ao sudeste, Ir. Rosalie chega à Pacoti num caminhão repleto de doações. O veículo demorou ali parado à espera que finalmente tudo fosse descarregado. Nesse ínterim o povo da cidade foi se aglomerando em torno do caminhão, ávido de novidades. Os músicos da banda local trouxeram os instrumentos e passaram a tocar animados dobrados em homenagem ao trabalho de caridade exercido pela freira. As outras irmãs solicitaram que executassem a marcha “Chegou o General da Banda”, pois era assim que gostavam de chamar a Ir. Rosalie por seu ar decidido e corajoso!

Outras tantas histórias ocorreram, envolvendo loucos, presentes de ladrão, a 2ª Guerra Mundial e até mesmo os bois que pararam de mover a moenda de um engenho quando seu proprietário negou apoio ao projeto de Ir. Rosalie. Histórias que, infelizmente, foram interrompidas com a paralisação do trabalho da irmã que foi acometida de um câncer que ela escondeu até poucos dias antes de sua morte, fato este que marcou um dos maiores funerais que Pacoti já teve, e que leva até hoje pessoas ao seu túmulo no cemitério local a fazer agradecimentos e preces à esta que ficou conhecida como uma verdadeira “santa do povo”.

Com o dinheiro acumulado adquirido nas doações, Ir. Rosalie havia começado o maior projeto de sua vida: a construção de uma nova sede para seu dispensário. Um belo prédio de dois andares, para melhor atender aos anseios de seus pobres. Ela não chegou a ver o prédio concluído, e que depois de inaugurado, ao longo de sua existência em atividade sequer chegou perto do que fora a dinâmica da simples “chulenga”. Hoje o belo prédio jaz abandonado, sem uso algum, sob o pó do descaso e do esquecimento do grande esforço empreendido pela personalidade forte de Ir. Rosalie, em prol de erguê-lo para a promoção social de nosso povo, há mais de meio século. Para que esse patrimônio seja valorizado, sua história precisa ser conhecida pelas novas e futuras gerações!

Entre as décadas de 1930 e 1950, a freira alagoana de nome religioso “Ir. Rosalie” morou no Patronato da Imaculada Conceição de Pacoti/CE no alto da Serra de Baturité, espaço escolar ainda hoje pertencente à congregação das Filhas da Caridade. Com o nome secular “Elisa Cavalcante” (1900-1955), nasceu em alto-mar e quando ainda bem criança perdera seus pais, ambos acometidos de “Bailarina” uma gripe infecciosa epidêmica que dizimou famílias inteiras. A pequena foi entregue aos cuidados de uma abastada família adotiva residente em Juazeiro do Norte, terra de Padre Cícero na região do Cariri. Já na adolescência, a jovem Elisa confirmou sua vocação apresentando-se no colégio das freiras na capital, Fortaleza, para iniciar sua vida religiosa.

Na condição de freira, Ir. Rosalie ao chegar a Pacoti, terra de sua primeira e única missão, foi encarregada pela superiora do patronato, Ir. Olga Ferraz, para administrar o espaço destinado aos pobres, um grupo essencialmente formado de famílias desvalidas sofridas, advindas do sertão próximo em tempos de seca procurando o refrigério serrano.

A irmã, um pouco robusta, sorriso franco, saía a trabalho com seu estranho véu armado sobre a cabeça, denominado “corneta”, modelo de hábito francês que lembra o da “noviça voadora” da série de TV. Chamava também a atenção de todos por seu espírito de aventura e desprendimento ao enfrentar as estradas íngremes da serra montada à cavalo sentada “de lado”, devido o uso da cela especial para mulheres, a visitar os casebres de taipa onde alentava doentes e amenizava privações doando gêneros de primeira necessidade, além de roupas, medicamentos, etc. Certas vezes acompanhada de jovens noviças, tinham que andar em alguns trechos léguas a pé, por caminhos lamacentos, atravessar rios cheios e passar por cercas de arame farpado, tudo enfrentando com risos de otimismo para amenizar o cansaço.

De caráter ardente e idealista, Ir. Rosalie zelou heroicamente dessas pessoas que procuravam abrigo e ajuda e sua influência crescia dia a dia na pequena cidade. É que tinha delicadezas de mãe, para quantos dela se aproximavam. Apesar do seu pouco estudo era dotada de grande intuição, sabendo resolver bem todos os problemas, mesmo os mais difíceis. E não foi só em Pacoti que a rodearam de estima e afeição. Também em várias outras cidades do interior, e até no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Recife, aonde quer que fosse procurar recursos para seus pobres. E sobre seus benfeitores exercia tanta influência que, dizem, alguns falavam que “à Irmã Rosalie a gente dá tudo quanto pede e ainda pensa que lhe fica devendo favor!”.

E sua vida em Pacoti foi se desenrolando por vezes cheia de lances comoventes, por vezes engraçados, quase todos ocorridos no ambiente organizado por ela para receber os necessitados. Batizado de “Dispensário São José”, esse espaço tinha como sede uma casa velha próxima do Patronato apelidada pelo povo de “chulenga”, aonde em seus cômodos armazenavam-se em caixões os mantimentos que angariava. Neles não faltavam feijão, arroz, farinha, rapadura, milho, sabão, etc. para as distribuições que fazia quinzenalmente. Houve época em que tinha cerca de 250 “protegidos” matriculados à espera de doações. Era também na “chulenga” que Ir. Rosalie ensinava o catecismo, costurava e consertava roupas e preparava datas festivas com direito a almoço e presentes como roupas, calçados e outras utilidades.

Numa dessas ocasiões, em que estava a distribuir duas sacas cheias de sapatos num lugarejo da zona rural com grande concorrência de pessoas, a irmã sentou-se um instante para aliviar o cansaço depois de longa caminhada até ali tirando os próprios sapatos e continuando a distribuição. Aconteceu, porém, que, quando terminado o trabalho quis calçar seus sapatos e percebeu que os mesmos também haviam sido doados. Felizmente apalpando um dos sacos alegrou-se ao ver que ainda restava um par que tinha justamente o seu número. Mas a decepção foi perceber que os dois eram do mesmo pé! Mesmo assim calçou-os e ainda no mesmo dia teve que viajar para Fortaleza para preparar-se para uma longa viagem ao sul do país aonde buscaria novas doações. Passou um bom tempo andando desajeitadamente, já que pelo voto de pobreza só poderia possuir um par de sapatos, até que foi presenteada com dois novos pares de sapato por um empresário que a deixou preocupada pelo fato de ganhar dois pares não seria contra o voto de pobreza!

Certa feita, Ir. Rosalie chegou a salvar o patronato da ação de dois ladrões que, disfarçados de freiras dominicanas, tentaram pernoitar no dormitório das irmãs. A única a perceber o embuste foi Ir. Rosalie que imediatamente correu ao único hotel da cidade para solicitar a reserva de um quarto para as “duas” alegando que o conforto da pousada era bem mais condizente com a importância das nobres visitantes! Destruindo o plano dos ladrões, os mesmos desapareceram na madrugada fugindo pela janela do quarto do hotel; tempos depois se soube pelos jornais de que dois gatunos vestidos de freiras eram presos em Fortaleza!

Porém, a história mais lembrada da irmã é, sem dúvida, a do escarro do ateu. Uma ocasião, entrando Ir. Rosalie num grande armazém dirigiu-se ao chefe, que sentado à secretaria contava grande maço de dinheiro. Aproximando-se, estendeu a mão e pediu-lhe uma esmola para seus pobres. O homem talvez indignado por o terem interrompido, escarrou-lhe em plena mão. Ir. Rosalie, imperturbável, com a outra mão tirou do bolso um lenço e limpou o escarro, dizendo: “Isto é para mim; eu queria uma esmola para meus pobres”. O homem caindo em si, disse-lhe comovido: “Irmã, me perdoe, pelo amor de Deus! Eu era um ateu, mas agora creio que Deus existe! Se ele não existisse não haveria pessoas como a senhora. Reze por mim!” E deu-lhe todo o dinheiro que estivera a contar e mais ainda algumas cédulas que tirou da gaveta, continuando a pedir perdão bastante humilhado. Ir. Rosalie ainda falou: “Não, meu filho. Isso não foi nada. Eu sou quem devo pedir-lhe desculpa por tê-lo interrompido numa ocasião tão imprópria”.

Depois de meses ausente, por viagens feitas ao sudeste, Ir. Rosalie chega à Pacoti num caminhão repleto de doações. O veículo demorou ali parado à espera que finalmente tudo fosse descarregado. Nesse ínterim o povo da cidade foi se aglomerando em torno do caminhão, ávido de novidades. Os músicos da banda local trouxeram os instrumentos e passaram a tocar animados dobrados em homenagem ao trabalho de caridade exercido pela freira. As outras irmãs solicitaram que executassem a marcha “Chegou o General da Banda”, pois era assim que gostavam de chamar a Ir. Rosalie por seu ar decidido e corajoso!

Outras tantas histórias ocorreram, envolvendo loucos, presentes de ladrão, a 2ª Guerra Mundial e até mesmo os bois que pararam de mover a moenda de um engenho quando seu proprietário negou apoio ao projeto de Ir. Rosalie. Histórias que, infelizmente, foram interrompidas com a paralisação do trabalho da irmã que foi acometida de um câncer que ela escondeu até poucos dias antes de sua morte, fato este que marcou um dos maiores funerais que Pacoti já teve, e que leva até hoje pessoas ao seu túmulo no cemitério local a fazer agradecimentos e preces à esta que ficou conhecida como uma verdadeira “santa do povo”.

Com o dinheiro acumulado adquirido nas doações, Ir. Rosalie havia começado o maior projeto de sua vida: a construção de uma nova sede para seu dispensário. Um belo prédio de dois andares, para melhor atender aos anseios de seus pobres. Ela não chegou a ver o prédio concluído, e que depois de inaugurado, ao longo de sua existência em atividade sequer chegou perto do que fora a dinâmica da simples “chulenga”. Hoje o belo prédio jaz abandonado, sem uso algum, sob o pó do descaso e do esquecimento do grande esforço empreendido pela personalidade forte de Ir. Rosalie, em prol de erguê-lo para a promoção social de nosso povo, há mais de meio século. Para que esse patrimônio seja valorizado, sua história precisa ser conhecida pelas novas e futuras gerações!

Fonte: Livro Pacoti: História & Memória, de Levi Jucá (Editora Premius, 2014).

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Trilha da Memória – Pacoti – CE