Capela de Jesus Crucificado

Cenotáfio de Donaninha Arruda

 

Domingo, manhã brumosa de 19 de janeiro de 1941, nas proximidades do Sítio Arvoredo passeavam algumas alunas do Patronato da Imaculada Conceição acompanhadas de d. Ana dos Santos Arruda (1895-1941), esposa do afamado Ananias Arruda. Donaninha, como era chamada, que também estava acompanhada de sua filha Rocivalda, sentiu-se mal durante a caminhada e de súbito faleceu ali mesmo à margem da estrada, vítima de um aneurisma cerebral.

Donaninha, que estava hospedada no Patronato, passaria alguns dias na cidade em missão cívico-religiosa regressando à Baturité, onde morava, no fim do mês. Juntamente ao esposo, eram beneméritos de inúmeras obras ligadas ao catolicismo, extremamente devotos que eram, e possuidores de muitos bens. Ananias era multifacetado: agricultor, comerciante, político, editor-chefe do jornal “A Verdade” e comendador, título concedido pelo papa que lhe dava o direito vitalício, dentre outros, de possuir uma capela residencial e construir outras onde quer que fosse possível.

Grande comoção seguiu-se ao fatídico episódio da morte prematura aos 45 anos de Donaninha, sepultada dois dias depois no Cemitério de Baturité. Em seguida, o esposo desolado sobe a serra para conhecer o exato local onde ela falecera e manda construir um pequeno monumento inaugurado no sétimo dia. Tratava-se de uma pequena coluna de alvenaria, na qual foi encravada uma cruz de boa madeira, em cuja base estava uma artística floreira e em cuja haste estava cravada uma moldura envidraçada, contendo na mesma: no alto, uma imagem da Virgem, ao centro, um retrato de Donaninha e em baixo uma fotografia de Ananias, com a seguinte dedicatória-súplica:

“À querida e inesquecível Donaninha, que deste lugar bendito, às 9h de domingo 19/01/1941 subiu inesperadamente ao Céu, onde goza a visão beatífica e contempla a Virgem Imaculada Mãe de Deus, Tributo do amor e da dedicação de seu amargurado esposo Ananias Arruda, que deste lugar sagrado e ao pé da Cruz Redentora, banhado em abundantes lágrimas de cruciante saudade a contempla e pede a todos que por aqui passarem uma prece para a maior glorificação de sua santa consorte – 26 de janeiro de 1941”.

Na grande cruz estava pregado um precioso crucifixo da Terra Santa, lembrança de Jerusalém, adquirido pelo casal na viagem que fizeram para lá em 1925. O monumento, circundado por grade de ferro, tinha ao sopé uma cruz de madeira, doação do Patronato, que fora beneficiado com doações do casal para a construção do prédio octogonal do Jardim da Infância, denominado “Pavilhão Donaninha Arruda”.

Na linguagem técnica da arquitetura chama-se a pequena construção erguida no local da morte de alguém de “Cenotáfio”, isto é, um monumento sepulcral erigido em memória de um morto sepultado noutra parte, aonde se aplica o termo “Epitáfio” (do grego, “sobre o túmulo”) que por sua vez consiste na inscrição (ou breve elogio fúnebre) da lápide ou estela do local onde se encontram os restos mortais. Alguns países têm na sua capital um cenotáfio sobre um túmulo vazio em honra ao Soldado Desconhecido, fazendo homenagem aos heróis anônimos das guerras. De maneira simples, conhecemos muitos cenotáfios levantados à beira de estradas, geralmente marcando locais de morte por atropelamento, em formato de capelas em miniatura ou simplesmente pequenas bases para cruzes.

Não obstante, tributo ainda maior foi a construção de duas capelas por Ananias em memória de sua Donaninha. A primeira com invocação à Santa Ana foi inaugurada aos 21 de dezembro de 1941, elevada na casa onde ela nasceu no município de Saboeiro; e a segunda igreja tendo como padroeiro Jesus Crucificado, edificada no local onde morrera em Pacoti e inaugurada no primeiro aniversário de sua morte na data de 19 de janeiro de 1942. Esta, sem dúvida, uma das maiores solenidades religiosas da história serrana.

O ato da benção da Capela em Pacoti foi imponente e piedoso não só pelo oficiante que foi o Arcebispo Metropolitano Dom Lustosa como pelo comparecimento de representantes de diversas ordens religiosas, autoridades, inúmeras associações católicas, famílias e incomputável massa popular. De Pacoti foram as Irmãs de Caridade e alunas do Patronato, o prefeito Alarico Ribeiro, o Juiz Dr. Agostinho Filho e outras autoridades, além de inúmeras pessoas de todos os recantos do município.

As cerimônias e as orações litúrgicas foram cantadas pelo Sr. Arcebispo e pela “escola cantorum” do Noviciado dos Capuchinhos de Guaramiranga. Após a benção do templo, D. Antonio benzeu as imagens dos diversos altares e o expressivo monumento ereto do outro lado da estrada que lhe serve de patamar e que substituiu o primitivo monumento anteriormente descrito.

 

Na primeira Missa, compareceram cerca de duzentas pessoas, porém a lotação de peregrinos durou o dia inteiro. De Baturité, vieram sete caminhões, um auto-ônibus e um automóvel. Ao todo foram celebradas diversas missas até o cair da tarde na presença de grande assembleia com a maior parte impossibilitada de adentrar à pequenina capela tomando toda a estrada, situação que não trazia grandes problemas, pois o trânsito era praticamente inexistente do período.

Segue a descrição física da Capela no dia de sua inauguração, adaptada do jornal “A Verdade”:

A Igreja de Jesus Crucificado foi construída por uma planta idealizada por Ananias Arruda, que administrou os serviços de sua construção que estiveram a cargo do pedreiro Clovis de Barros. Está localizada à margem esquerda da estrada Pacoti-Guaramiranga, sobre uma barreira na altura de 2 metros acima do nível da mesma estrada, para a qual se sobre por duas escadarias de marmorito que terminam num pórtico externo sobre o qual se eleva uma bela torre assentada em colunas e desenhada por Orlando Luna Freire de acordo com o plano projetado. Tem 5 altares. O principal que é dedicado a Jesus Crucificado, se acha em frente ao pórtico da torre com paredes circulares que terminam em abóbada com vitrais verdes e brancos tendo um deles a forma de Cruz, em frente do qual está uma imagem do Crucificado tendo ao pé as imagens da Virgem Dolorosa, S. João Evangelista e Santa Maria Madalena.

Aos lados, intermediados com janelas com vitrais estão os altares de Santo Inácio de Loiola, cuja festa a Igreja celebra no dia em que nasceu a saudosa Donaninha e de S. Sebastião, santo do dia em que ela foi sepultada.

Nas extremidades laterais da Igreja que tem uma área interna de 14 metros por 4 metros, foram construídos dois altares recuados em forma de pequenas Capelas com abóbadas e vitrais em honra de S. José, padroeiro da boa morte e de Santa Ana, santa que deu o nome à saudosa Donaninha.

No pórtico da torre, ao lado da estrada há uma bela estátua do Sagrado Coração de Jesus construída em granito pelos Irmãos Bernardini do Rio de Janeiro. No mesmo pórtico, para o centro da Igreja há um grosso vidro que dá vista a todo o interior da mesma. À margem direita da estrada, em frente à Igreja e ao lado do local onde foi arrebatada ao seio de Deus, a saudosa Donaninha, eleva-se em forma de monumento um grande Cruzeiro com a imagem de Cristo, ao pé do qual entre jardineiras estão duas lápides de mármore. Uma, em substituição a quadro que fora colocado anteriormente, tem uma imagem da Virgem e os retratos de Donaninha e de seu amargurado esposo feitos em porcelana engastados entre os mesmos dizeres do antigo envidraçado.

A outra, que se acha no pedestal principal tem uma fotografia de Donaninha no leito mortuário, com os seguintes dizeres: Ana dos Santos Arruda, saudosa consorte de Ananias Arruda. Nasceu em Saboeiro aos 31 de julho de 1895, casou-se em Baturité aos 17 de setembro de 1911 e faleceu em Pacoti aos 19 de janeiro de 1941.

Aos lados do monumento, entre jardineiras de cimento armado, elevam-se quatro grandes colunas recebendo simbólicos anjos, em frente às quais, no começo e no fim das escadarias da Igreja estão outras quatro colunas também entre jardineiras e recebendo outros quatro anjos.

No paredão de granito sobre o qual se elevam as escadarias e a torre, está colocada no centro uma grande lápide de mármore no cimo da qual há uma imagem de Jesus Crucificado com os seguintes dizeres:

IGREJA DE JESUS CRUCIFICADO construída por Ananias Arruda em frente ao lugar, onde na manhã de 19-1-1941, foi chamada ao seio de Deus súbita e inesperadamente, sua querida Donaninha – Ana dos Santos Arruda – solenemente benta e inaugurada pelo Sr. Arcebispo D. Antonio Lustosa, com assistência do esposo, filhos ,pai, irmãos, cunhados, sobrinhos, primos; do interventor Menezes Pimentel, Secretários de Estado, Jesuítas, Salesianos, Salesianas, Franciscanas, Capuchinhas, Irmãs de Caridade, associações religiosas, imprensa, grande número de sacerdotes, autoridades, famílias de Pacoti, Baturité, Fortaleza e Saboeiro e grande massa popular havendo pregação preparatória de três dias, Missas, grande número de comunhões e exéquias de 1º aniversário de falecimento.

Ananias Arruda pede a todas as pessoas que visitarem esta Igreja, uma prece a Deus pela maior glorificação no Céu de sua querida e inesquecível consorte Donaninha Santos Arruda.

Ao lado direito há um cofre acima do qual se leem as seguintes palavras: É salutar rezar pelos mortos. Uma esmola para as almas do Purgatório.

Ao lado esquerdo há outro com os dizeres: Quem dá aos pobres empresta a Deus. Uma esmola para os pobres.

Abaixo da referida lápide, sobre uma pequena coluna está um anjo com uma cruz na mão tendo a outra em direção ao lugar do falecimento da saudosa Donaninha, cujo local está revestido de concreto que se estende em toda a largura da estrada e acompanha o espaço da Igreja formando o patamar da mesma.

A Igreja é circundada por balaustradas de cimento armado sobre as quais estão colocadas longas jardineiras que se acham cheias de plantas com variadas e perfumadas flores.

A construção da Igreja contou com prévia autorização oficial do Governo do Estado e em terreno gentilmente cedido pelo Sr. Robert Gradvhool e com aprovação do Exmo. E Revdmo. Sr. Arcebispo Metropolitano.

Hoje, a Capela de Jesus Crucificado é conhecida popularmente como “Capelinha do Arvoredo”, “Oratório” ou “Cenotáfio de Donaninha Arruda”, apesar de na verdade termos aí um complexo formado por duas edificações distintas: um cenotáfio (monumento com cruzeiro) e uma capela à sua frente. Foi o primeiro bem arquitetônico a ser tombado pela municipalidade, em 1995, por ocasião de uma visita técnica da equipe regional do IPHAN de Fortaleza que solicitou ao governo local o início de uma política de preservação patrimonial.

Lei Municipal N.º 891/95, de 30 de Junho de 1995.

Tomba ao Patrimônio Público do Município de Pacoti o bem que indica e dá outras providências.
O Prefeito Municipal de Pacoti, faço saber que a Câmara Municipal aprovou e eu sanciono e promulgo a seguinte Lei:
Art. 1º - Fica tombada ao Patrimônio Histórico e Turístico do Município de Pacoti, a Capela localizada às margens da CE-065, trecho Pacoti/Guaramiranga, encravada nas terras do sítio Arvoredo, neste Município.
Art. 2º - O município encarregar-se-á da recuperação, manutenção e administração do bem tombado nesta Lei.
Art. 3º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
Paço da Prefeitura Municipal de Pacoti – CE, 30 de Junho de 1995.
Pedro Antonio Brito Filho
Prefeito Municipal

Como uma espécie de imposição (de cima para baixo), costume dos atos de governo, durante esse processo “automático” de tombamento não houve espaço para a educação patrimonial que garantiria uma maior valorização daquele bem e consequentes cobranças de preservação através do conhecimento de sua história pelo povo. De tal modo que desde então, contradizendo a legalidade, a Capela tornou-se alvo fácil de atos de vandalismos e por ter sido profanada deixou de funcionar como tal. Algumas imagens sacras de seu interior se encontram na residência de Ananias Arruda em Baturité, hoje espaço do Museu mantido pela família, ou no poder de particulares. Querubins quebrados, escadaria modificada após a destruição parcial pelo impacto de um veículo, placas de mármore com textos cobertos pela irresponsável pintura a cal que deveria cobrir apenas as paredes. E por fim projetos de restauração que já foram postos no papel, no entanto nunca na prática.

Ainda contribuem para esse abandono a relativa distância da Capela do centro de Pacoti e, principalmente, o problema de acesso à mesma devido ao trânsito movimentado da moderna rodovia que torna o percurso um tanto perigoso. Mais que isso, o desconhecimento da história de amor que envolve sua construção fizeram as novas gerações criarem narrativas das mais absurdas que citam carruagens, quedas de cavalo, mausoléu e assombrações que mais distancia esse lugar da memória coletiva pela força da superstição. Seu estado atual é, infelizmente, deplorável e reflete a insensibilidade do Poder Público na questão do patrimônio histórico.

Curiosamente, na mesma rodovia que dá acesso ao centro de Pacoti do lado que ruma à Palmácia, encontrar-se-á outro cenotáfio, no entanto modesto como a maioria, contíguo ao Sítio Olho d’Água. Este foi erguido in memoriam do professor Samuel Uchôa, ali assassinado cruelmente em 1963, numa história totalmente oposta à primeira, uma vez que evoca o ódio, ao invés do amor. Assim como na vida o fim é a morte, nossa cidade aponta nas suas duas saídas, dois marcos que celebram esse fim. Ante esse comum mistério humano, continuemos a observar como muitos saíram da vida para entrar na História.

Fonte: Livro Pacoti: História & Memória, de Levi Jucá (Editora Premius, 2014).

Projeto Jovem Explorador e o Ecomuseu
Trilha da Memória – Pacoti – CE