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Os professores ‘Merlís’ da vida real, que ‘quebram as regras’ para inspirar alunos como na série da Netflix

Vanessa Fajardo - De São Paulo para a BBC News Brasil

Merlí Bergeron é o professor que protagoniza uma série catalã produzida pela TV3 e exibida no Brasil pela Netflix. Vivido pelo ator espanhol Francesc Orella, ele ensina filosofia aos alunos do ensino médio de uma escola pública e aproveita episódios que acontecem na vida dos alunos para abordar os conceitos dos principais pensadores. Na trama, Merlí (que dá nome à série) não está preocupado em aplicar o conteúdo oficial da grade curricular, e sim, em dar sentido à escola e à eduçação .

O furto de uma prova inspira uma aula sobre Aristóteles, protestos na escola rendem aprendizados sobre Nietzche. Sócrates aparece em um capítulo sobre doutrinação. Muito próximo dos alunos, Merlí também é o docente que os ajuda a descobrir talentos, enfrentar medos, conflitos familiares e viver paixões.

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Na vida real, em todos os cantos do Brasil, assim como Merlí, muitos professores fazem a diferença na vida dos alunos. No interior do Ceará, Levi Jucá ensina história na sala de aula, mas mostrou aos estudantes que o grande espaço de aprendizagem pode estar fora da escola. Em Macaparana, em Pernambuco, o professor Jucélio Guedes da Silva tem feito os alunos se apaixonarem por biologia, a disciplina que leciona. Na aula de filosofia de Valmir Ratts, em São Paulo, todo mundo participa – e aprende.

Professor de Ética e Filosofia da USP e ex-ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro admira a forma de ensinar de Merlí e diz que a principal virtude do professor fictício é saber ouvir o adolescente.

“No ensino médio, essa escuta de quem é o aluno é ainda mais importante. É um período de escolha de caminhos, de rumo de vida, não é só vocação profissional. Há professores excelentes, bons em suas matérias, carismáticos na relação com os alunos, mas ser Merlí não é fácil não”, diz Janine Ribeiro, que já ministrou dois cursos livres de filosofia em São Paulo inspirados na série.

Janine lembra que Merlí é um “demolidor de regras” e isso o agrada muito. “Aqueles alunos não desenvolveriam o mesmo potencial com outro professor. Merlí vai no conteúdo, vai no coração, e isso é raro. Falta para alguns professores mais segurança de si próprios e mais disponibilidade para saber que as teorias não regem o mundo.”

Expedição, história e orgulho em Pacoti

Em Pacoti, cidade de pouco mais de 10 mil habitantes no Ceará, o professor de história Levi Jucá, de 30 anos, poderia ter ficado dentro da sala na Escola Estadual de Ensino Médio Menezes Pimentel ensinando os conteúdos previstos no currículo, mas acha que a educação vai muito além dos muros da escola.

Em 2014, ele criou um projeto chamado Jovem Explorador, que leva os alunos do ensino médio a pesquisarem o território onde moram e relacionarem à teoria aprendida na escola. Com o trabalho, Levi ganhou prêmios na área de educação e viajou até a China para apresentar o projeto que segue em andamento.

A vontade de conhecer e registrar a história de Pacoti veio quando Levi ainda estava na graduação, na Universidade Federal do Ceará (UFC). “Quando comecei a dar aulas vi que os alunos não conheciam a cidade, estavam presos ao currículo de história, que é muito mais focado na região Sudeste”, diz. Ele próprio começou a fazer pesquisas, que resultaram no livro Pacoti, História & Memória , lançado em 2014.

Na sala de aula, sempre que podia, Levi associava a história do Brasil à da cidade. “Comecei a ver um brilho no olhar deles e passei a usar meu livro em sala, apesar de não ser um material didático. Os alunos se interessavam mais quando o conteúdo era relacionado ao dia a dia deles.”

Não demorou muito para começarem a sair da escola para explorar a cidade. A ideia surgiu em uma aula sobre Brasil Império em que Levi contava de uma expedição que saiu do Rio de Janeiro para o Ceará com pesquisadores brasileiros. “Falei para eles, que tal fazermos nossa própria expedição e fazer uma releitura da nossa história para vivenciar e conhecer as nossas riquezas? Diferentemente da escola, quando as disciplinas estão separadas, na vida está tudo conectado.”

Localizada em uma área de preservação ambiental do Ceará, Pacoti abriga um trecho de Mata Atlântica, por isso tem um “ar de floresta” e um clima frio que chama a atenção por ser tratar do Nordeste. Por isso, os alunos de Pacoti têm à disposição uma rica natureza para explorar por meio de trilhas.

Guiados pelo professor Levi, eles passaram a fazer expedições e catalogar espécies vegetais, de insetos, além de conversar com moradores, recolher imagens, doações de objetos e registrar depoimentos. O trabalho envolve outras disciplinas além de história. O material recolhido virou um museu batizado de Ecomuseu, que é administrado pelos alunos.

As atividades do Jovem Explorador ocorrem no período do contraturno escolar. Durante as aulas regulares, o professor discute o material recolhido. Essa foi a forma que o professor Levi encontrou de inovar no ensino e cumprir o cronograma estabelecido pela escola.

“Já fiz trilha com os meninos em horário de aula, nunca fui impedido, mas era questionado sempre. ‘Isso está no currículo, vale a pena fazer isso?’ Também já ouvi outros professores falarem: ‘o que você vai fazer na floresta com os meninos se é professor de história?’ A visão tradicional de ensino ainda é muito latente.”

Neste Dia dos Professores, Levi espera que outros docentes saiam de suas zonas de conforto – embora seja mais trabalhoso, segundo ele, o resultado é gratificante. Nos últimos quatro anos ele diz ter aprendido mais do que aprenderia em qualquer doutorado.

“Sei mais sobre plantas e animais, consigo falar sobre muitos assuntos e enxergar a educação de forma integral. Todo espaço é um espaço de aprendizagem; o professor precisa aceitar isso, precisamos ser pesquisadores. Ensinar requer pesquisa, e o mantra do projeto é que só amamos o que conhecemos.”

De quebra, com o trabalho, Levi ganhou amigos. “Passei a ter uma relação mais afetiva, de confiança com os alunos. Frequentamos as casas uns dos outros, comemoramos aniversários, viramos uma família. Todos se tornaram filhos e irmãos, trocamos ideias e aflições.”

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